quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Padre Lima Vaz e a legitimidade de um pensar cristão

Agradeço-lhes, na pessoa do Padre Jamir Pedro Sobrinho, a gentileza pela escolha de meu nome para participar da VIII Semana Temática Filosófica do Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário, de Caratinga. Aqui iniciei, em 1994, meus primeiros voos como professor de Filosofia, a convite do saudoso Mons. Levy de Paula Figueira (+04/02/2010), a quem dedico estas palavras, non solum in memoriam sed et in laudem.

É uma alegria estar aqui neste Seminário, lugar onde são cultivadas, durante anos, sementes do LÓGOS. Aqui, uma única e mesma semente é jogada no solo dos corações destes jovens que cursam Filosofia e Teologia. São dois cotilédones de uma semente única, bipartida: o logos philosophicus e o logos theologicus, que, saídos do chão, apontam para um mesmo horizonte, como se se tratasse do modelo ideonômico de Platão: o logos philosophicus – o que escolhi como objeto de trabalho – é aquele que realiza a tarefa anabática, isto é, faz a penosa experiência da subida de nossa razão ao Transcendente; e o logos theologicus – o que orienta o mais profundo do meu existir – realiza o movimento inverso, katabático, do Transcendente em direção à razão finita do homem. Ambos são, portanto, partes distintas (mas não separadas) de um único LOGOS SPÉRMATOS Transcendente que nos fascina e nos deixa maravilhados.

Com a audácia de um sonhador, iniciei aqui o magistério, visitei outros ares e lugares, e hoje aqui retorno com mais coragem que perícia, com mais projetos que realizações, mas sem medo de sucumbir nesta tentativa de voo, pois além da audácia dos que não conhecem o perigo tenho a meu lado companheiros e amigos, como, por exemplo, o Prof. Maurício Cruz. Direi aqui umas poucas palavras, umas ideias simples, portadoras do desejo único de apresentar uma foto 3X4 de um filósofo brasileiro e apontar caminhos para uma futura pesquisa sobre esse autor escolhido e querido – Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ, ou talvez – ousadia minha, sonho meu – provocar um estímulo para a leitura dos textos desse filósofo profundo e tão pouco conhecido entre nossos professores. A simplicidade aqui mencionada, sem falsa modéstia, deve-se à falta de engenho e arte do palestrante.

Quando me deparei com o tema desta Semana Filosófica – “O pensamento filosófico cristão no século XX – um tema de atualidade permanente e de atualidade conjuntural – não pude deixar de pensar no entrelaçamento entre FÉ e RAZÃO que acontece na estrutura simbólica de nossa civilização há quase vinte séculos, desde as primeiras gerações de cristãos.

Se hoje falamos em pensamento filosófico cristão é porque uma plêiade enorme de homens vieram antes de nós. Pensemos nos Padres da Igreja, e nos filósofos como Plotino, Agostinho de Hipona, Boécio, Anselmo de Aosta, Tomás de Aquino, para citar apenas as estrelas de primeira grandeza.

Nossa cultura vive, há pelo menos quatro séculos – desde o século XVII – uma viva acerbação da luta da “Ilustração contra a superstição”, da “Luz contra as trevas”, uma polaridade de tensão entre Razão e Fé, fazendo com que dois grandes pontífices – Leão XIII e João Paulo II – produzissem dois textos magistrais que merecem uma atenta reflexão de nossa parte: Aeterni Patris (04-08-1879) e Fides et Ratio (14-09-1998). São os dois maiores textos balizadores do pensamento filosófico cristão.

(Voltarei a falar sobre a polaridade da tensão entre Razão e Fé no final desta palestra).

Creio que o tema de minha palestra – Padre Lima Vaz e a legitimidade de um pensar cristão – se insere perfeitamente no tema central das reflexões dessa VIII Semana – "O pensamento filosófico cristão no século XX" – e tem como justificativa as palavras do próprio Padre Vaz em seu último livro, Raízes da modernidade: em seu texto, ele afirmou situar-se no prolongamento de uma tradição filosófica que reivindica a legitimidade de um pensar especificamente cristão. E ele nos faz uma pergunta provocadora: “pode o estudioso que se professa cristão permanecer dentro desse universo da tradição filosófica ou deve, por honestidade intelectual, emigrar para o campo do fideísmo dogmático, de uma praxeologia voluntarista, da evasão mística ou, simplesmente do sentimento religioso puramente subjetivo?” (Henrique Cláudio de Lima Vaz, Escritos de filosofia VII: Raízes da modernidade, São Paulo: Loyola, 2002, p. 7).

Antes de buscar respostas, permitam que eu lhes fale rapidamente sobre esse filósofo brasileiro, mineiro de Ouro Preto, que nasceu em 24 de agosto de 1921. Estudou no Colégio Arnaldo, de Belo Horizonte, e ingressando na Companhia de Jesus, cursou Filosofia em Nova Friburgo, RJ, e fez Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Foi ordenado sacerdote em 15 de julho de 1948. Obteve o doutorado em Filosofia, em Roma, com uma tese sobre a dialética e a intuição nos diálogos platônicos da maturidade. Autor de vasta obra filosófica, Padre Vaz exerceu o magistério por quase 50 anos.

De inteligência privilegiada e de excelente preparação filosófica, Padre Vaz possui uma obra que aborda todos os principais campos do saber humano. Seus Escritos de Filosofia, em seis volumes, juntamente com os dois volumes da Antropologia Filosófica, trazem em torno de 5.600 notas bibliográficas, que não são apenas referências bibliográficas, mas preciosos comentários que demonstram conhecimento detalhado da obra referenciada (Carlos Drawin, Padre Vaz: um mestre incomparável, in: MAC DOWELL, João A. Saber filosófico e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 378).

Esse homem singular uniu inteligência e cultura ao desejo de ajudar os alunos a descobrir o fascínio da verdade e o método rigoroso do trabalho intelectual. Orientador da Juventude Estudantil Católica (JEC), da Juventude Universitária Católica (JUC), o sábio jesuíta marcou profundamente a vida de muitos jovens durante os chamados “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil, nos anos 60 do século passado. Padre Vaz atuou ininterruptamente no magistério filosófico universitário, seja na Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, em Nova Friburgo (1953–1963), Rio de Janeiro (1975–1981) e Belo Horizonte (1982-2001), seja nos cursos de graduação, mestrado e doutorado do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (1964-1986), da qual recebeu em 2001, o título de Professor Emérito. Faleceu em 23 de maio de 2002.

Vários estudiosos já abordaram o pensamento vazeano em livros e inúmeros artigos. Para citar apenas alguns:
•SANTOS, Pedro Paulo Cristóvão dos. Ética e história, BH, UFMG, 1965;
•GAMBIN, Pedro. História e absoluto no pensamento de H.C de Lima Vaz, Porto Alegre: PUC, 1982 (mestrado);
•SCHMIDT, João Pedro. Teoria e práxis no pensamento de H.C de Lima Vaz. Porto Alegre, UFRGS, 1988 (mestrado).
•CRUZ, Pedro Cunha. O homem e a transcendência no pensamento de H.C de Lima Vaz. Roma. Pontificia Universitá di Santa Croce, 1995 (mestrado).
•SAMPAIO, Rubens Godoy Sampaio. A ontologia da intersubjetividade em Henrique Cláudio de Lima Vaz, Belo Horizonte: UFMG, 1999, (mestrado), trabalho editado com o título “O ser e os outros: um estudo de teoria da intersubjetividade”, São Paulo: Unimarco, 2001.
•SAMPAIO, Rubens Godoy. Metafísica e modernidade: método e estrutura, temas e sistema em Henrique Cláudio de Lima Vaz. Tese doutoral, publicada pela Loyola (São Paulo, 2006):

Cinco são os temas que atravessam os escritos de Lima Vaz: o mundo, o sujeito, a história, a cultura e a transcendência. Estão integrados em um sistema, e são atravessados pela perspectiva da metafísica do existir e pela perspectiva da compreensão genética da modernidade.

O primeiro momento de articulação sistemática desses temas se dá na Antropologia filosófica, na qual foram organizados a partir de uma perspectiva antropológico-personalista que repousa sobre a ideia da unidade da Razão. (SAMPAIO, Rubens. O ser e os outros, p. 11-15).

O tema do mundo obedece a quatro enfoques aprofundados na reflexão sobre a categoria da objetividade: o mundo como “physis” na racionalidade clássica; o mundo como natureza científica na racionalidade empírico-formal; o mundo compreendido a partir da racionalidade fenomenológica, e o mundo dos objetos da racionalidade técnica.

O tema do sujeito, segundo Lima Vaz, já está subjacente ao pensamento de Platão, quando este coloca o problema da natureza da ciência; ao pensamento de Aristóteles, quando este argumenta com o cético na base do princípio de não-contradição; e no pensamento de Tomás de Aquino, quando este fala da reflexão inspirada em Agostinho.

Na filosofia moderna, o problema do sujeito surge com o “eu penso”, cartesiano, e com o “Eu transcendental”, de Kant . Contudo, a noção de sujeito que se apresentou a Lima Vaz como a mais problemática, mais questionante e mais original foi a noção hegeliana de sujeito como conceito, como “Espírito Infinito”, que é atividade, é processo, movimento. E Lima Vaz, a partir da Lógica, de Hegel, pensará o sujeito como expressividade, como se pode comprovar na Antropologia filosófica, nos seus dois volumes.

O tema da história foi tratado através da noção de consciência histórica, que aos poucos foi sendo substituída pelo problema da inteligibilidade histórica, pois a consciência histórica supõe que a história seja inteligível e compreensível pelo sujeito para que ele possa alcançar a consciência histórica. A cultura, obra humana por excelência, é tema presente em toda a obra de Lima Vaz. O tema se desdobra nos temas da intersubjetividade e do ethos. Lima Vaz afirma que não há possibilidade de se pensar uma comunidade humana (lugar do nós) sem pensar juntamente a questão do ethos, patrimônio universal no qual se espelham todos os nossos atos singulares, ganhando sentido positivo ou negativo.

Todos os quatro temas aqui assinalados – o mundo, o sujeito, a história, a cultura – apontam para o quinto tema, a transcendência, apresentado como o fundamento dos discursos sobre o mundo, o sujeito, a história e o sentido da história, bem como o fundamento da comunidade ética e, portanto, do ethos. A transcendência apresenta-se como uma consequência natural de sentido para a história, para o mundo, para a cultura, pois cada uma dessas dimensões é um contínuo desdobrar da expressividade do homem. Ao lado e além da abertura do humano para sua alteridade, há a abertura para o Totalmente Outro, o Absoluto, aquele que dá sentido teleológico ao constante ultrapassar que o homem faz diuturnamente.

Voltando à indagação de Lima Vaz sobre a legitimidade de um pensar cristão, poderíamos fazer uma outra indagação: seria mesmo legítimo e oportuno, além das paredes deste Instituto, falar de um “pensar cristão” após o interdito imposto por Kant sobre o tema da transcendência? Seria essa tarefa possível e legítima após a imensa produção de Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud e outros chamados filósofos da suspeita? Assim indago porque o pensar cristão nos remete à categoria do Absoluto e este parece estar reduzido hoje a uma disjuntiva simples: ou o Absoluto existe como Ser-em-Si, como Aquele que É, isto é, como Ens a Se e como Criador e, então, o homem é nada; ou o homem é artífice real de si mesmo e do seu mundo, e o Absoluto transcendental é uma quimera a ser exorcizada.

Uma das causas da mencionada disjuntiva parece ser o abandono da Metafísica e, com ela, o surgimento de uma ideia da Razão que deu lugar à noção de que tudo é construído pelo homem e de que não há princípio algum fundante ao qual o homem se refira. Na origem desse paradoxo pode-se notar o abandono de um Absoluto trans-mundano e trans-histórico que guiou o homem ocidental na descoberta de si mesmo na sua auto-afirmação como pessoa-inteligência e liberdade.

Muitos daqueles que são chamados a dar respostas, na impossibilidade de enfrentar tal situação interrogante, ou mesmo na falta de coragem para tal, fugiram para o fideísmo, que não é uma reabilitação da metafísica, mas situa-se na esteira imanente da racionalidade moderna. Também muitos são aqueles que, diante da crise da razão moderna (que não mais dá conta de explicar a realidade!), ousam falar de fé, de uma transcendência ética ou religiosa, mas o fazem sem uma reflexão crítica que admita o contraditório. Dizem que a verdade ou a falsidade das afirmações é apenas uma questão de fé, ou seja, deve-se admitir racionalmente a possibilidade de crer em um mundo transcendente, mas a verificação de tal crença não poderá suportar a falsificabilidade, não poderá se submeter ao controle da razão.

Em busca de respostas para as questões existenciais e coetâneas, Lima Vaz buscou e abriu caminhos para se pensar o transcendente divino sem deformá-lo. Para ele, um trabalho filosófico de linha especificamente cristã consiste na re-elaboração contínua das perguntas e respostas que concernem à pertinência recíproca entre a filosofia cristã como passado da filosofia moderna e o universo simbólico das “razões elaboradas e codificadas” no domínio da modernidade. Percebe-se a fidelidade do filósofo às questões de amplitude e seu esforço para transcender os limites do seu tempo, mas sempre a partir da imanência à história vivida, a qual inclui a visão crítica dos limites dessa história. O dever do filósofo, segundo Lima Vaz, é o de realizar um ensaio sempre recomeçado, de forma rememorativa, articulando os problemas do presente àqueles que a tradição nos legou na longa tessitura histórica.

O historiador da Filosofia no Brasil, Jorge Jaime, da Academia Brasileira de Filosofia, intitula o capítulo dedicado ao Padre Vaz “O homem é abertura para o outro e criador da história. A história é liberdade” (História da Filosofia no Brasil, v. 3, p. 279-294. A obra completa é de quatro volumes, publicados pela Editora Vozes, RJ, em co-edição com as Faculdades Salesianos, SP, 2000). Em seu texto, Jorge Jaime nos diz que Lima Vaz tem consciência de que o cristianismo não é apenas uma doutrina, mas um fato. O cristianismo é profundamente fatual e histórico, como se comprova em sua obra de 1968, Ontologia e história. O humanismo cristão é marcado pelo teocentrismo, é um humanismo de encarnação, por ser um humanismo marcado pela ação do homem, pela teleologia do homem na história, pela dimensão temporal e pela transformação do mundo.

Por ser um filósofo conhecedor profundo da História da Filosofia, Lima Vaz não se deixou intimidar pelo interdito moderno e contemporâneo feito à metafísica, pois ela é uma dimensão irrenunciável da filosofia, sob pena de esta deixar de existir. É a metafísica a busca das origens, da radicalidade, das raízes, e o insigne jesuíta, como aqueles que buscam as nascentes dos grandes rios – Amazonas, Nilo, para citar apenas os dois maiores – foi buscar as raízes de seu filosofar em Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Agostinho e Hegel, ensinando-nos que não basta conhecer os rios pelos mapas ou os filósofos pelos manuais. É preciso ir às fontes abundantes – duc in altum! (Lc 5,4) – ou ir às raízes profundas se se quer edificar algo que tenha as características daquilo que vence o tempo presente.

A sociedade contemporânea, examinada e interpretada sob múltiplos aspectos, vem se constituindo dentro de um ambiente de individualismo e caracteriza-se, segundo Lima Vaz, pela fragmentação da imagem do homem; pela compreensão pluriversal do homem; pelo predomínio da relação de objetividade ou da relação instrumental, na sua forma de compreensão explicativa ou tecnocientífica do fato social; pela precariedade do efetivo reconhecimento intersubjetivo, na sua forma universalizada pelo fenômeno da globalização; e ainda pela abrangência da sua crise de sentido. Diante de tal realidade, o projeto filosófico de Lima Vaz é animado por um princípio conceptual unificador das linhas explicativas do fenômeno humano, sem ceder a reducionismos – fideísmo dogmático ou evasão mística, por exemplo – frequentemente encontrados em diversos pensadores. Esse princípio de unidade, para Lima Vaz, está na referência ao Absoluto, como termo intencional da categoria de transcendência.

Fugindo dos reducionismos muito comuns em nosso tempo, o homem vazeano é compreendido como uma unidade triádica aberta ao mundo, aberta ao outro e aberta ao Absoluto, e só assim o homem se realiza plenamente como pessoa. O homem não se reconhece na relação não-recíproca com o mundo-natureza, mas tão-somente em sua relação intencional e recíproca com os outros sujeitos. Ilustrando isso, podemos dizer – se bem entendemos o livro do Gênesis – que Adão-Homem não se reconheceu ao contemplar as maravilhas do Éden, mas só se reconheceu como homem ao contemplar-se em Eva-Mulher: essa, sim, é carne da minha carne, é osso dos meus ossos! (Gn 2, 23).

Esse encontro de pessoas, segundo Lima Vaz, essa relação dual eu-tu, é o elemento fulcral da concepção da história e da sociedade, que, por sua vez, constituem o campo semântico para a compreensão da categoria da intersubjetividade. No entanto, nem a história e nem a sociedade se identificam com o ser do homem e, por isso, o discurso filosófico não pode encontrar o seu termo último no horizonte da comunidade humana. O homem, ser livre e inteligente, não esgota o seu ser no horizonte do mundo e da história: o homem é um ser-para-o-Absoluto (Antropologia filosófica I, p. 239): Fecisti nos ad Te, disse Santo Agostinho. Com João Paulo II poderíamos acrescentar: como poderia ser considerado autêntico um uso da liberdade que se recusa a se abrir àquilo que permite a realização de si mesmo? (Fides et Ratio - FR, 13) ou ainda: “Verdade e liberdade, com efeito, ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem “ (FR, 90), disse o pontífice-filósofo.

Para o Padre Vaz, religião e fé não eram algo extrínseco com o qual se relacionava: nelas vivia e delas se alimentava espiritualmente (DRAWIN, Carlos. Síntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 94, 2002, p. 151). Vivia naquele ambiente que João Paulo II descreveu como sendo o lugar em que “o intellectus fidei requer o contributo de uma filosofia do ser” (FR 97). Lima Vaz, segundo seus amigos e confrades, não experimentava conflitos interiores a respeito da compatibilidade entre suas convicções religiosas e sua profissão de filósofo e professor de filosofia, pois desde o início guiara-se pela diretriz de Santo Agostinho “crê para entenderes e entende para creres”, como se pode ver nos capítulos II e III da encíclica Fides et Ratio, de João Paulo II. Essa dialética agostiniana entre fé e razão assegurou-lhe uma convivência fecunda entre a fé que professava e a razão que praticava. Seu trabalho filosófico manteve-se rigorosamente dentro das exigências metódicas e doutrinais da razão, e todas as vezes que atingia as fronteiras onde a razão se encontra com a fé essa linha divisória era explicitamente traçada.

A solidez de sua vasta cultura científica e humanística proporcionou ao Padre Vaz uma visão abrangente da teologia cristã, da história e literatura ocidentais, das ciências humanas e naturais. Extraordinária erudição filosófica lhe conferiu um conhecimento invejável do conjunto do pensamento ocidental.

Radicado, portanto, na tradição filosófico-teológico-espiritual cristã, longe de rejeitar a configuração racional que as categorias do pensamento grego deram à experiência neotestamentária, reconheceu neste encontro gerador da civilização ocidental um duplo ganho: para a fé, a possibilidade de justificar-se através de um discurso com pretensão universal; para a razão filosófica, a abertura de horizontes insuspeitados para a compreensão da existência humana. Desde sua tese de doutoramento não deixou de aprofundar o estudo da filosofia grega, facilitado pelo domínio desta língua que lhe assegurava a familiaridade com as obras de Platão e de Aristóteles. Entretanto, foi em autores cristãos que buscou os elementos básicos de sua construção sistemática. Grande admirador de Santo Agostinho e conhecedor profundo da filosofia medieval, identifica as raízes do pensamento moderno nas correntes responsáveis pela desagregação da grande síntese tomasiana. De fato, como afirmou seu confrade jesuíta Paulo Menezes, professor da Universidade Católica de Pernambuco, seu autor predileto de Lima Vaz é, sem dúvida, Tomás de Aquino, mestre insuperado, não porque depois dele a problemática filosófica não tenha atingido profundidades antes impensáveis, mas pela lucidez e equilíbrio de sua abordagem das questões fundamentais, ainda hoje capaz de fecundar a reflexão (Vaz e Tomas de Aquino, in: MAC DOWELL, João A. Saber filosófico, história e transcendência, p. 65-69).

Para encerrar, retomando o tema da VIII Semana de Filosofia ¬– "O pensamento filosófico cristão no século XX" –, embora consideremos o Padre Vaz como um pensador cristão e católico, um “diácono da verdade” (FR, 2) o seu pensamento não pode ser reduzido a “pensamento cristão” e sua filosofia não pode se reduzir a uma “filosofia cristã”. Explico-me: Podemos dizer que há um pensar cristão que considera, dentre outras características, a criação do mundo e a encarnação do Verbo Divino, elementos que os gregos nem sequer suspeitariam serem mencionados. Mas esse pensar cristão, para ser verdadeiro, deve poder se encaixar entre as colunas da razão e, assim construir um edifício sólido que todos reconheçam como válido e no qual todos possam entrar e se reconhecerem. Assim sendo, a reflexão de Lima Vaz, a nosso ver, mesmo partindo de alguém impregnado dos cânones cristãos, segue, contudo, aquela luz fundamental que ilumina todo aquele que se abre ao maravilhar-se do mundo; sua reflexão antropológica, por exemplo, notadamente marcada pela abertura ao transcendental, é de grande valor para o cristianismo e para todos os credos que admitem a existência de um Princípio Criador, mas sua filosofia não é uma ancilla theologiae, pois vai além dos cânones cristãos, mas não contra eles. Mesmo sendo cristão e sacerdote católico, Padre Vaz, ao buscar respostas para as questões do homem de fé ou não, não emigra para o fideísmo dogmático, ou se refugia numa praxeologia voluntarista, ou se evade para uma mística que mascara as questões humanas fundamentais.

Encontramos, sim, em Lima Vaz uma justificativa que legitima um pensar cristão, mas que nele não se fecha, mas vai além dos paradigmas colocados na cultura ocidental pelo fato inquestionável da tradição cristã. Lima Vaz, como todo filósofo, transpõe em conceitos o existir histórico de seus coetâneos, e o faz a partir da razão e da memória ruminada e transformada, transubstanciada no exercício da contemplação e da escrita.

Não busca o filósofo, em seu exercício nada lúdico, apenas as superfícies dos fatos, pois elas, antes de revelarem causas, escondem muitas vezes os sintomas que podem levar às causas que repousam em profundidades antigas, elaboradas por Kant em quatro perguntas fundamentais: o que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? O que é o homem? (Crítica da razão pura, A 805, B 833; Antropologia filosófica, p. 9) Tais perguntas são feitas por cada ser humano que vem ao mundo, e é a elas que Lima Vaz procurou dar respostas em seu filosofar de quase seis décadas.

Em busca de compreender o momento presente, o momento moderno, “agoral”, ou seja, o nosso tempo, Lima Vaz, aproveitando a chegada da encíclica Fides et Ratio (FR), de João Paulo II, brindou-nos com um excelente comentário, dando-nos luzes para enxergamos na escuridão do túnel.

Em setembro de 1999, no mesmo mês em que João Paulo II publicou a encíclica FR Padre Vaz, numa conferência realizada no Núcleo de Estudos Teológicos (NET), da PUC Minas, analisou o texto pontifício e justificou o seu sentido de atualidade permanente e de atualidade conjuntural. Tentarei fazer, aqui, um resumo daquilo que disse o nosso filósofo. (Henrique C. de Lima Vaz, Metafísica e fé cristã: uma leitura da Fides et Ratio. Síntese, v. 26, nº 86, 1999, p. 293-305)

Disse-nos que uma causa única, necessária e suficiente, agiu decisivamente no sentido da ruptura da meta-analogia entre Fé e Razão: a imanentização da Transcendência e a consequente leitura materialista de Aristóteles feita por Ibn-Rosch (Averróis) no século XII e adotada na Universidades no século XIII, resultou no Nominalismo que, em formas diversas, chegou ao século XVII causando a polaridade de tensão entre as “razões da fé e as razões da razão”.

Não foi o famoso episódio da condenação de Galileu o marco teórico dessa ruptura, mas sim as Regulae ad directionem ingenii (1629), de R. Descartes, pois indicavam os rumos de uma nova ciência ou nova filosofia. O texto cartesiano iniciou o processo teórico da transposição da transcendência real para a transcendência lógica, o que significou a primazia do sujeito sobre o “ser” e soberania matemática no universo intelectual.
Ocorreu também a passagem de uma estrutura teocêntrica para uma estrutura antropocêntrica da Razão. Vieram as metafísicas racionalistas, como a de Kant, um século e meio depois de Descartes.

A imanentização lógica da transcendência tornou inviável a proposição de uma nova meta-analogia entre Fé e Razão. Os dois termos estão em confronto. O lógico é o domínio do operável; a razão moderna é essencialmente operacional, e a operação da razão passa sob o domínio completo do sujeito, dando origem ao processo pretendidamente autônomo e sem fim, designado como “mau-infinito” por Hegel.

Lima Vaz conclui o seu comentário dizendo que, embora a razão moderna avance pela vertente antropocêntrica, a orientação para o pólo transcendente real que está na origem da razão bíblica e da razão grega aparece como tendência irreversível da Razão no sentido mais amplo e aflora aqui e acolá mesmo no seio da razão moderna. Esse não é um problema para ser tratado apenas dentro dos muros dos Institutos superiores ou das Universidades, mas deveria tomar conta de nossas conversas e impregnar nossa cultura.

Eis, portanto, meus caros amigos, algumas pistas deixadas por Padre Vaz e agora trazidas por mim a este Seminário, com simplicidade. Espero ter sido útil, pois assim terá sentido a minha presença.

Muito obrigado pela atenção de todos.

Prof. Pe. Ismar Dias de Matos, PUC Minas.

Caratinga/MG, 05 de outubro de 2010.


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