quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O épico e o dialético em Grande Sertão: Veredas

A Ilíada e a Odisséia estão entre os principais textos formadores de nossa cultura ocidental. São dois textos épicos e, portanto, inaugurais de nosso Logos cultural. Neles o poeta, como intérprete da memória singular de seu povo, transforma-se em filósofo, coetâneo intérprete da consciência universal e da cultura. O aedo reconduz a consciência, antes dispersa na exterioridade imediata do mundo sensível, à sua espiritualidade, com uma mensagem universal. Ele transmite não a singularidade de suas vivências, mas a dimensão espiritual da consciência realizada no ethos de seu povo.

A epopéia inaugura a palavra como a nova morada do homem. No mundo épico, como diria Hegel, a palavra é a mediadora entre a Natureza e o Absoluto. Podemos dizer que o discurso épico é a exteriorização da consciência através da palavra, que denuncia a emergência do espírito de um povo para além da mítica realização do elemento divino nos elementos naturais. A elaboração do conceito, no plano consciente, é a continuação de um processo que começou desde que o homem balbuciou os primeiros sons.

O texto épico, gestado ao longo de muitos séculos, é o elemento que harmoniza a natureza e o espírito que nela comparece como força divina. A beleza épica da gênese da consciência reside no fato de que a ordenação e a unificação da realidade se processam, agora, sob a égide universalizante do mundo ético. A consciência começa a se configurar como povo, ou seja, como universalidade ética, e é neste sentido que Hegel vai falar de um retorno da consciência a si mesma.

Em nossa literatura, Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, figura como um destes textos inaugurais. Riobaldo Tatarana, o personagem-narrador, nos apresenta a singularidade de suas vivências – o contexto vivido na jagunçagem do sertão – agora universalizadas no romance, em forma de conceitos e valores recriados através de sua narrativa alegórica. Pode-se dizer que o texto rosiano incorpora o ethos no cosmos e é pela mediação deste que a consciência adquire a universalidade ética. Em outras palavras: a particularidade da consciência narrativa de Riobaldo (Jagunço-narrador), inserida no contexto recriado do Cosmos-Sertão, atinge a epopéia de um Ethos Universal. O poeta-filósofo Riobaldo, vivendo o ócio de quem não “mói no asp’ro”, faz uma pausa, simbolizada pelos dois pontos [:] para contar, a partir das “Veredas”, aquilo que ele quer mostrar como “Grande Sertão”, e que está em toda parte. O “Sertão” singular, lugar da existência contingente, torna-se “Grande Sertão” (Cosmos, Universal), através da narrativa que reordena e revaloriza o vivido e lhe dá sentido. Refaz-se, aqui, o movimento da dialética mostrada por Hegel, e que Guimarães Rosa muito bem simbolizou na frase que serve de epígrafe da obra: “o diabo na rua, no meio de redemoinho”.

Ismar Dias de Matos, professor de Filosofia na PUC Minas.

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