domingo, 26 de agosto de 2007

Uma epidemia chamada "crime organizado"

A violência que nos assusta hoje é tão antiga quanto a humanidade, e o crime é tão antigo quanto o Estado. Não há registro histórico que apresenta os seres humanos convivendo em plena harmonia. O Paraíso descrito pelas religiões e mitologias é tão somente um desejo, não uma saudade. Pode-se dizer que o fratricídio e outras formas de violência registrados nas mais antigas e atuais literaturas estão implícitos no ser humano, fazem parte dele. O crime, por sua vez, só foi assim chamado a partir da existência das leis que o tipificaram. O aparelho estatal, dentre outras finalidades, visa manter os seres humanos em paz e harmonia.
Para que haja paz, não podem coexistir no Estado dois poderes competitivos. Se existem dois poderes – um oficial e outro paralelo – pode-se dizer que não há poder nenhum.
O poder paralelo nasce naqueles lugares onde o Estado oficial se omite, isto é, não se faz presente através de benfeitorias públicas, como infra-estruturas, lazer, educação e, quando atua, o faz apenas nos momentos de repressão ao crime (uma presença negativa). Nas periferias geográficas e sociais surge o poder paralelo, pois o homem não respira no vácuo do poder.
Em 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que quando o Estado não está presente é preciso que seja recolocado, “senão não há cidadania. Há o arbítrio, controlado pelo malfeitor, pelo quadrilheiro”. Para o ex-presidente-sociólogo “não existe Estado de Direito quando se tem, todo dia, o desrespeito à lei. Seja nos casos graves, ou nos que parecem menos graves, todos vão corroendo os valores fundamentais da cidadania” (JBOnline, 22 de junho de 2002, p. 1). O Estado tem-se mostrado ineficiente para combater esse estado de desordem que cresce em seu interior.
Em junho de 2002, o então Comandante do Exército, general Gleuber Vieira, falando sobre a violência no Rio de Janeiro, afirmou: “Estado Paralelo não acho que existe, porque isso pressupõe um objetivo político. Os traficantes dos morros do Rio não querem um poder político nem governar o Estado, querem ter apenas o controle da área onde comandam o tráfico”(Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, 17 de junho de 2002, p. 2). Isso parece uma auto-enganação da autoridade, aquela atitude conhecida como “tapar o sol com a peneira”. Os traficantes não têm apenas o desejo de controlar uma área, um território, mas possuem um controle de fato, um controle rígido, autorizando entradas e saídas, submetendo os moradores a humilhantes toques de recolher, estabelecendo horário de abertura e fechamento do comércio e até de escolas, julgando e executando “réus”, como no famoso caso do jornalista Tim Lopes, da TV Globo, em 02 de junho de 2002. Os soldados do tráfico impedem que a polícia oficial intervenha para que eles, os traficantes, possam exercer suas atividades ilegais como quiserem. Esses (des)mandos não seriam classificados como um objetivo político? Teriam apenas um objetivo econômico? E se fosse apenas econômico, poderia a autoridade tolerá-lo ou consenti-lo?
Não se pode falar em “estado paralelo” sem falar sobre o “Crime Organizado”, que é um novo tipo de crime, surgido nas últimas décadas.
O chamado “Crime Organizado”, que tem assustado a cidade e o estado de São Paulo nos últimos meses, possui características próprias que o tornam diferente da criminalidade comum e eventual, e há uma grande dificuldade para se chegar a uma delimitação precisa de seus elementos específicos.
O Promotor de Justiça Paulo César Corrêa Borges, de São Paulo, em seu livro O Crime Organizado (Editora Unesp, 2002), fala da dificuldade em qualificar o Crime Organizado, mas aponta seus elementos essenciais, fazendo suas as palavras de A. S. Franco: a) tem caráter transnacional; b) aproveita-se das deficiências do sistema penal, a partir de sua desestruturação organizacional e de sua estratégia de atuação global; c) a sua atuação resulta em um dano social acentuado; d) realiza uma variedade de infrações, com uma vitimação difusa ou não; e) está aparelhado com instrumentos tecnológicos modernos; f) mantém conexões com outros grupos delinqüenciais, ainda que estes sejam desorganizados; g) dispõe de ligações com pessoas que ocupam cargos oficiais, na vida social, econômica e política; h) em geral, utiliza-se de atos de extrema violência; i) recorre a mecanismos que lhe permitem beneficiar-se da inércia ou da fragilidade dos órgãos estatais (p.21).
A CPI do Narcotráfico (1999-2000) verificou que o Crime Organizado supera as fronteiras do Brasil e, além do tráfico de drogas ilegais, também opera no ramo de furto e roubo de veículos, roubo de cargas, lavagem de dinheiro e fraudes financeiras, jogo do bicho, falsificação de remédios, contrabando, corrupção de autoridades, sonegação fiscal e crimes contra a ordem econômica, roubo a bancos, seqüestro, grupos de extermínio etc. É um monstro aterrorizante, com muitos tentáculos, invisível enquanto figura, mas totalmente sensível em suas ações desastrosas.
O jornalista Carlos Amorim, em seu livro CV-PCC: a irmandade do crime (Editora Record, 2003) afirma que o Crime Organizado no Brasil “é uma epidemia para a qual não se conhece direito o melhor remédio”(p.16). Essa terrível realidade afeta todas as camadas da sociedade, desde as pequenas comunidades até os poderes da República, pois percorre a polícia, a justiça e a política. Trata-se de uma atividade globalizada e, infelizmente, o País não está preparado para combatê-la. O combate é um desafio de sobrevivência dos cidadãos e de soberania nacional, e não apenas uma simples questão social.
A maior fonte de receitas do Crime Organizado vem do comércio ilegal de cocaína. A ONU estima que a produção anual dessa droga nos três países vizinhos do Brasil é de mil toneladas. Se há tamanha oferta é porque a demanda é igualmente enorme. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (em inglês: UNDCP), cerca de 3,3% a 4,1% da população mundial usa drogas ilícitas, ou seja, são cerca de 200 a 250 milhões de pessoas, que geram uma cifra anual de um trilhão e meio de dólares, quase quatro vezes o PIB do Brasil.
A CPI do Narcotráfico concluiu que o Crime Organizado no Brasil, além de 20 mil mortes anuais, gera cerca de 200 mil empregos diretos e movimenta, conforme afirma a ONU, em torno de US$ 20 a US$ 40 bilhões por ano, valor muito superior à receita da indústria turística brasileira (R$ 32 bilhões).
Toda essa quantia, no entanto, não fica nas mãos daqueles bandidos badalados pela mídia. Os grandes chefes do crime nas favelas do Rio, São Paulo, Vitória, Recife, etc, não são, como muitos imaginam, os maiores traficantes do País. Na expressão de Hélio Luz, que foi chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro (1995-1996), esses bandidos midiáticos são apenas os “gerentões do varejo” (cf. Mário Magalhães, O narcotráfico, Publifolha, 2000, p.19). Os grandes chefes dos escalões superiores, que compram a droga na fonte, e que não aparecem na TV, esses é que realmente movimentam o sinistro mercado. Segundo Mário Magalhães, a movimentação financeira do narcotráfico está concentrada nas mãos de transportadores, lavadores de dinheiro e financiadores do comércio da droga. O financiamento é feito de várias formas: pelos próprios cartéis produtores, fornecendo em consignação; por grandes transportadores que se associam em pool; por varejistas, que também compram em conjunto; por distribuidores do exterior que bancam todo o ciclo, desde a saída do local de produção (o.c, p. 67).
Como se pode notar, a questão é bastante complexa. Se se trata verdadeiramente de uma “epidemia”, o seu combate não poderá ser feito com remédios paliativos, fornecidos de forma assistemática, como é comum em nossa cultura brasileira. O tratamento deve ser intenso, sistemático e constante. Será preciso uma ação organizada e consciente de toda a sociedade brasileira para que o mal seja sanado. Os aventureiros de plantão, à caça de votos, apresentam soluções mágicas, rápidas e eficientes. Sabemos, contudo, que uma epidemia não se combate assim. Sem uma transformação cultural nada poderá ser feito com sucesso.

Ismar Dias de Matos
www.ismardiasdematos.com.br

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