sábado, 25 de agosto de 2007

BLACK BIRD

Naquela manhã, pouca coisa além da janela desigual que dava para o pátio da pençãozinha. Para os fundos, ficava o Mercado Municipal, com o habitual cheiro de estrume dos animais de carga que traziam a feira do sábado. E também o cheiro era proveniente do capim tirado do bucho das magras vacas abatidas invariavelmente às sextas-feiras. Poder-se-ia dizer que era uma paisagem quase triste, mas ninguém pensava definir as coisas assim. Definir é colocar fim, é cercar. E cercar é colocar arme farpado no pensamento. Toda cerca, quando muito, deveria ser provisória, hoje aqui, amanhã, alhures. Cercas são objetos violentos.
Assim pensava o marido encostado à janela. Narbal se chamava. E estava despido. Quase. Pálido. Desgrenhado. Ensimesmado, de costas para a mulher, contemplava o pátio descolorido. Tossiu uma, duas, três vezes. Um chiado longo no peito. Será que a asma estaria com uma crise nova? Jurema, a esposa, acordou-se de leve. Ele acompanhou o seu lento despertar, cada gesto cotidianamente repetido. O olhar dela, naquela manhã, carregava tanta coisa. Ele podia entender isso. Sempre entendera. Seu olhar demonstrava algo semelhante a um triste amor, quem sabe, ou uma indefinição ainda maior.
Levantando-se, Jurema abraçou Narbal em silêncio, os dois num silêncio imenso, que mesmo os insignificantes pardais entenderam. O relógio ficou esquecido num canto. O sol começava a aquecer o ambiente.
- Sonhei com urubu esta noite, disse Jurema.
- ...
- Tinha, também, frango morto, partido ao meio.
Tão longe estava Narbal Álvares, longe, nas asas dos vagabundos pardais, que nada ouviu da mulher.
Ela se lembrava da festa da noite anterior. Sim, eles foram ao leilão de Santo Antônio dos Pobres, no Rio Grande. O leiloeiro loquaz oferecera frangos e vinhos e assados tantos, mas cadê o dinheiro nos bolsos? Um saquinho de pipocas para Jurema no momento de virem s’embora, foi toda a festa que fizeram. Ela comeu a pipoca devagarinho, bem devagarinho, aproveitando o sal, lambendo os dedos, feito o destino dentro da gente, brincando de eternidade.
Em casa, um copo d’água fria... Ai que sono!
Narbal recolhera no ar úmido do quarto as palavras distantes da mulher. E ficou a pensar no corvo do “poeta louco americano”, como dizia Belchior.
- Urubu é uma palavra três vezes triste, concluiu. A mulher pensou durante o tempo em que os pardais comiam os restos de farofa que a cozinheira lhes jogara.
- Quem te falou isso?
Narbal Álvares Rodrigues não ouvia perguntas, fazia muito tempo, acostumado que estava a ruminar idéias como o boi retira sabedoria das palhas de milho à sombra das castanheiras.
- Repare como a letra “u” se repete em tudo que é triste.
- ...
- ... luto, túmulo... ataúde, póstumo, tumba, cruz... Também a chuva é triste, principalmente em março, quando traz um sentimento profundo de dor. A tristeza daquele domingo (era um domingo úmido de junho) era quase inevitável. Nem mais um restinho de vodka, os cigarros contados, os amigos, quase todos viajando... Uma onda de amor entrou com a lufada fria do vento do pátio. Junto, vinha também o chilrear dos pardais de Minas.
Narbal abraçou Jurema e quase sorriram. Jurema e a manhã se irmanaram numa abertura para o sol.
- A solução para o câncer está no urubu, disse um deles.
Uma pausa para o silêncio.
- Isso é charada?
- Não, deu no Fantástico.
Se chovesse, os pardais iriam s’embora. Só black-bird se instalara para sempre na memória ímpar de Narbal, feito a tatuagem do amor de Jurema em sua alma cigana. Sair dali? “Nunca mais”.

Ismar Dias de Matos
www.ismardiasdematos.com.br

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