Em sua preocupação em harmonizar razão e fé, João Paulo II insistia em recuperar a tradição tomista porque São Tomás, na Idade Média, foi o primeiro pensador a realizar esse trabalho, ressaltando a plena autonomia da razão em face da fé, sem o risco de aceitar a tese da dupla verdade: uma verdade que é própria da razão e outra que é afirmada pela fé, tese sustentada pelos averroístas latinos. Assim, o presente artigo, sem maiores pretensões, deseja apresentar aos alunos do Curso de Filosofia da PUC Minas, algumas pistas para um estudo do pensamento tomista e sugestão de leituras atuais e abalizadas sobre esse tema.
O filósofo jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, falecido em maio de 2002, durante sua profícua atividade intelectual, antecipou o desejo de João Paulo II, publicando importantes textos atualizando o pensamento de São Tomás.
Embora tenha vivido em um exíguo espaço de tempo, São Tomás de Aquino (1225-1274) produziu uma extensa obra: Comentário sobre as sentenças, Suma contra os gentios e a famosa SumaTeológica. Para que se tenha uma visão geral desse grande pensador, são apresentadas, abaixo, algumas teses que contêm o essencial de sua filosofia teorética, que foram resumidas pelo jesuíta Guido Mattiussi, professor na Universidade Gregoriana, de Roma. Em 1916 a Santa Sé aprovou esse resumo e
a Sagrada Congregação dos Seminários o recomendou aos estudantes. O texto, aqui dividido didaticamente em quatro tópicos, chegou ao autor deste artigo através do Pe. Dr. Celso de Carvalho (1913-2000), professor de Filosofia no Seminário Arquidiocesano de Diamantina, que foi aluno do Padre Mattiussi, em Roma, na década de 1940.
I Metafísica
1. Potência e ato de tal modo dividem o ente, que tudo quanto existe ou é ato puro ou resulta necessariamente de potência e ato como suas partes ou princípios intrínsecos.
2. O ato, como perfeição, só é limitado pela potência, que é capacidade de perfeição. Portanto, na ordem em que há um ato puro ele é necessariamente infinito e único; pelo contrário, onde ele é finito e multíplice, aí ele entra em verdadeira composição com a potência.
3. Por isso, na absoluta razão (conceito, aspecto) do ser mesmo, só Deus é que subsiste, uno e simplicíssimo; tudo o mais que participa do ser tem uma natureza, na qual o ser é contraído; tudo o mais consta de essência e existência como princípios distintos.
4. O ente (denominação que lhe vem do esse ou ser) não é predicado univocamente de Deus e das criaturas, mas não é predicado tampouco equivocamente; mas analogicamente – tanto por analogia de atribuição como pela analogia de proporcionalidade.
5. Além disso, há em toda criatura a composição real de sujeito subsistente com formas acrescentadas secundariamente, isto é, acidentes; essa composição, porém, não poderia ser entendida, se o esse não fosse realmente recebido numa essência distinta.
6. Além de acidente absoluto, existe ainda o relativo (relação ou ad aliquid). Com efeito, embora o ad aliquid não signifique no seu conceito (ratio) exato, algo inerente a algo, tem, frequentemente, sua causa nas coisas reais e, portanto, numa realidade distinta do sujeito.
7. A criatura espiritual é absolutamente simples na sua essência. Resta-lhe, no entanto, uma dupla composição – essência e existência; ou substância e acidentes.
II Somatologia
1. Quanto à criatura corporal, é composta, na sua mesma essência, de potência e ato; tais potência e ato na ordem da essência recebem nomes de matéria e forma.
2. Nenhuma dessas duas partes tem o ser por si nem é produzida ou se corrompe per se, nem é colocada entre os predicamentos a não ser reductive, como princípio substancial.
3. Embora a extensão em partes integrantes acompanhe a natureza corporal, não é a mesma coisa para o corpo ser substância e ser de tal quantidade (quantum). Com efeito, a substância por si mesma (ratione sui) é indivisível, não como ponto mas como algo que está fora da ordem da dimensão; a quantidade, que confere extensão à substância, difere realmente da substância e é um verdadeiro acidente.
4. A matéria marcada pela quantidade é o princípio de individuação, isto é, da distinção numérica (que não pode existir nos puros espíritos) entre dois indivíduos da mesma natureza específica.
5. É também graças à quantidade que um corpo fique circunscritivamente locado e só possa estar, desse modo, em um só lugar, qualquer que seja a potência.
6. A densão dos corpos é bipartida: viventes e não-viventes. Nos viventes, para que no mesmo sujeito existam per se parte movente e parte movida, uma força substancial chamada alma exige uma disposição orgânica ou partes heterogêneas.
7. As almas de ordem vegetal e sensitiva de forma alguma subsistem por si nem são produzidas por si, mas são tão somente por princípio graças ao qual o vivente existe e vive, e – uma vez que dependem totalmente da matéria – corrompido o composto, automaticamente se corrompem per accidens.
III Psicologia
1. Diversamente às almas vegetal e sensitiva, a alma humana subsiste por ela; quando pode ser infundida num corpo suficientemente disposto, é criada por Deus e, por sua natureza, é incorruptível e imortal.
2. Essa alma racional une-se de tal modo ao corpo, que é sua forma substancial única; por ela o homem existe como homem, e animal, e vivente, e corpo, e substância e ente. Portanto ela confere ao homem todo grau essencial de perfeição, além disso comunica ao corpo o ato de ser, graças ao qual ela mesma existe.
3. Brotam da alma humana, como resultados naturais, duas espécies de faculdades: orgânicas e inorgânicas; aquelas (entre as quais estão os sentidos) radicam-se no composto (corpo e alma); estas, só na alma. Portanto, a inteligência é uma faculdade intrinsecamente inorgânica.
4. A faculdade intelectual acompanha (sequitur) necessariamente a imaterialidade, e isso de tal modo que os graus de afastamento da matéria são também os graus da faculdade intelectiva. O objeto adequado da intelecção é o ente comum; mas o objeto próprio da inteligência humana, no estado atual de união (com o corpo) é limitado às qualidades abstraídas das condições materiais, isto é, os universais.
5. Portanto, é das coisas sensíveis que recebemos o conhecimento. Uma vez, porém, que o sensível não seja inteligível em ato, além do intelecto formalmente inteligente, deve-se admitir na alma uma força ativa que abstraia dos fantasmas as espécies inteligíveis.
6. Por essas espécies inteligíveis conhecemos diretamente os universais; é com os sentidos que atingimos as coisas singulares, mas depois também com a inteligência, por analogia e um retorno aos fantasmas chegamos ao conhecimento das realidades espirituais.
7. A vontade segue o intelecto, não o precede; ela deseja necessariamente o que se lhe apresenta como bem que satisfaça o desejo, de toda parte; mas entre os bens que sejam propostos a um juízo mutável, ela escolhe livremente. Portanto a escolha segue-se ao juízo prático último; mas é a vontade que faz que seja juízo último.
IV Teodiceia
1. Que Deus existe, não o percebemos por intuição imediata nem o demonstramos a priori; demonstramo-lo a posteriori, isto é, pelas coisas que foram feitas levando a argumentação dos efeitos para a causa: portanto, parte-se:
a) Das coisas que são movidas mas não podem ser o princípio adequado do seu movimento para o primeiro movente imovido;
b) Do processo das coisas mundanas de causas subordinadas entre si, à Primeira Causa não causada;
c) Das coisas corruptíveis, que indiferentemente se referem ao ser e ao não ser, ao Ser absolutamente necessário;
d) Das coisas que, numa gradação do menos ao mais, segundo diminuídas perfeições de ser, viver e compreender, são, vivem e compreendem, Àquele que é o maximamente vivo, inteligente, vivente e ente;
e) Finalmente, da ordem do universo a uma Inteligência que pôs ordem, dispôs e dirige ao fim as coisas.
2. A essência divina, por identificar-se com a “atualidade exercida” do próprio ser ou por ser o próprio ser subsistente, é-nos proposta, constituída como que no seu conceito (ratione) metafísico; e por isso mesmo dá-nos a razão de sua infinitude na perfeição.
3. Portanto, pela própria pureza do seu ser, Deus se distingue de tudo o que é finito. Daí se conclui:
a) que o mundo não pôde provir d’Ele a não ser por criação;
b) que a virtude criadora, pela qual primeiramente é atingido o ser enquanto ser, nem por milagre é comunicável a qualquer criatura finita;
c) que nenhum agente criado pode influir no ser qualquer efeito que seja senão por uma noção recebida da causa primeira.
Autor: Prof. Pe. Ismar Dias de Matos, PUC Minas. O presente texto é resultado de apontamento de aulas de Filosofia Medieval e faz parte de um artigo do autor “O humanismo filosófico de João Paulo II”, 2005, publicado em: http://www.ismardiasdematos.com.br/joaopaulo.pdf (as referências bibliográficas completas estão nesse site)
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