Texto de Marco da Vinha, adaptado por Ismar Dias de Matos(*)
29 de abril: chegamos mais uma vez ao Domingo de Ramos, cujo significado ainda é desconhecido por muitos católicos. Refiro-me aos ramos que são abençoados e distribuídos neste dia; donde eles vêm?
Nós os encontramos no Segundo Testamento, na narrativa da entrada de Jesus em Jerusalém, dias antes da Sua Paixão. Olhemos para as perícopes da entrada, em especial para aquelas que mencionam a existência de ramos – Mateus (21, 1-11), Marcos (11, 1-10), e João (12, 12-16). Por que nos falam os evangelistas da presença de ramos?
Procurei olhar esses textos, não como um católico do séc. XXI, mas como um judeu do séc. I. O que a nós poderá passar despercebido como um “mero detalhe” que dá origem a um sacramental neste dia, para um judeu contemporâneo de Jesus encerava um significado profundo.
A existência de ramos e gritos de Hosanna remetem-nos para o festival de Sucót, geralmente referido como Festa das/dos Tendas/Tabernáculos no Segundo Testamento.
A observância de Sucót, cuja duração é uma oitava, foi estabelecida por Deus quando se celebrava a Aliança com Israel no Monte Sinai, sendo uma das três festas de peregrinação obrigatória a Jerusalém. A festa era de natureza agrícola, pois calhava na época da colheita (cf. Ex 23,16; 34,22); mas como toda a festa agrícola judaica, estava revestida de significado religioso também. Servia para “fazer memória” do tempo em que Israel vagueou pelo deserto, vivendo em tendas, antes de entrar na Terra Prometida, quando Deus os fez sair da casa do Egito: “Habitareis nas tendas durante sete dias; todos os que nasceram em Israel deverão habitar em tendas, para que os vossos descendentes saibam que fiz habitar em tendas os filhos de Israel, quando os fiz sair da terra do Egito”.
Estava prescrita a leitura da Lei durante a festa a cada sete anos: “Ao fim de sete anos, na Assembleia do Ano da remissão, pela festa das Tendas, quando todo o Israel comparecer diante do SENHOR, teu Deus, no lugar que Ele tiver escolhido, farás a proclamação desta Lei a todo o Israel. Reunirás o povo, homens, mulheres e crianças, e o estrangeiro que estiver nas tuas cidades, a fim de que escutem, aprendam e reverenciem o SENHOR, vosso Deus, e cumpram todas as palavras desta Lei. Os filhos deles, que ainda não conhecem, ouvirão e aprenderão a reverenciar o SENHOR, vosso Deus, enquanto viverdes na terra de que ides tomar posse, depois de passardes o Jordão”.
Era também uma festa que prefigurava/antecipava a “colheita final” de Israel, quando este reuniria todas as nações em Deus. Dada a grandiosidade da festa, e da alegria a ela associada, começou a ter ligações à linhagem real: por exemplo, durante esta festa Salomão dedicou o Templo (1 Rs 8). Após o regresso do exílio na Babilônia, e com a ausência dum rei, a festa foi ganhando conotações messiânicas. Já o profeta Zacarias nos fala do dia em que as nações haverão de vir celebrar o Sucót a Jerusalém:
Os que restarem de todas as nações, que tiverem marchado contra Jerusalém, irão todos os anos adorar o Rei, o Senhor do universo, e celebrar a festa das Tendas.
Era uma festa caracterizada por: alegria, “tendas”, ofertas, e ramos. São estes últimos que nos interessam hoje.
No primeiro dia, apanhareis belos frutos, ramos de palmeira, ramos de árvores frondosas e dos salgueiros do rio; e regozijar-vos-eis na presença do SENHOR, vosso Deus, durante sete dias.
Os ramos – luláv, em hebraico – seriam de tamareira, e teriam murta e salgueiro atados juntamente. Crê-se que estas plantas serviriam de recordação do tempo passado no deserto, uma vez que correspondem a espécies comuns nesse ambiente. O luláv deveria ser apresentado pelos fiéis no Templo todos os sete dias que durava a celebração de Sucót, e as crianças eram obrigadas a levá-lo a partir do momento em que já conseguissem abaná-lo. Durante as celebrações no Templo (cujos símbolos Jesus identificou consigo mesmo em São João), o coro cantaria os salmos de Hallel (de louvor) – os Salmos 113 a 118. Quando eram cantados os Hosannas no Salmo 118 toda a assembleia abanava os seus ramos em direção ao altar.
Como já referi, na época de Jesus, esta festa já não estava associada ao rei “atual”, da casa de Davi, mas ao Filho de Davi que haveria de vir. Sucót haveria de ser a única festa que perduraria no final dos tempos, após a vinda do Messias; a grande festa de louvor em que Israel finalmente consumaria as núpcias com o Seu Senhor. Não é por acaso que no livro do Apocalipse nos surge a imagem da multidão composta por pessoas de todas as nações diante do trono do Cordeiro, com ramos nas mãos:
Depois disto, apareceu na visão uma multidão enorme que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé com túnicas brancas diante do trono e diante do Cordeiro, e com palmas na mão.
Todo este simbolismo estaria presente na mente dum judeu do primeiro século. A presença destes sinais na entrada triunfal não implica a celebração da festa, mas o reconhecimento por parte do povo israelita, em quem estas imagens estariam bem presentes, de que o Filho de Davi tinha chegado, e que se iniciava o Sucót derradeiro (tal como São Pedro perguntou se deveria montar tendas aquando da Transfiguração).
Chegado ao fim desta breve exposição histórica, o que são para nós, então, os ramos que recebemos no Domingo de Ramos, que levamos em nossas mãos em procissão, e que eventualmente levaremos para casa? Estes ramos são testemunhos da nossa fé no Messias. São sinal de que o Filho de Davi salva. São reconhecimento do Cristo Rei. A liturgia bracarense demonstra isto duma forma sutil na procissão, através da cruz processional. Enquanto que no rito romano tradicional a cruz está velada, uma vez que nos encontramos já dentro do tempo litúrgico conhecido como "Tempo da Paixão", no rito bracarense a cruz é desvelada para a procissão, demonstrando que esta é uma entrada triunfal, de alegria. Estes ramos são uma lembrança de que, apesar de dentro de alguns dias o Senhor sofrer a Sua Paixão, “Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat”. São sinais escatológicos na medida em que revelam a nossa fé e esperança no Rei dos Reis que há de vir no fim dos tempos, para consumar as núpcias com a Sua Noiva, a Igreja, enxugando as nossas lágrimas.
(*) Ismar Dias de Matos é professor de Filosofia e Cultura Religiosa na PUC Minas. E-mail: prof.ismar@terra.com.br
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Para entender bem o cristianismo, é preciso conhecer o judaísmo. Parabéns, professor Ismar por este texto tão didático.
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